Morre Dona Laura, que conheceu a Menina Francisca, da Cruz da Menina
Morreu ontem em Patos a senhora Laura Vieira de Figueiredo, aos 101 anos de idade.Dona Laura tinha nove anos em 1923, ano em que a Menina Francisca, da cruz da Menina, foi morta. Elas tinham a mesma idade, eram amigas, brincaram juntas, e a tragédia que se abateu sobre a Menina sempre foi rememorada por ela com uma época de grande comoção em Patos.
Foi com base nos depoimentos de Dona Laura que o retrato falado da Menina Francisca foi feito, pois ela sempre questionava a imagem que normalmente é divulgada e comercializada no Parque Cruz da Menina como muito diferente da menina que ela conheceu.
Dona Laura era professora e costureira e,com a idade, enfrentou muitos problemas de saúde:teve as duas pernas amputadas, a primeira há mais de quinze anos e a segunda mais recentemente, e também ficou cega de um olho, além outros problemas comuns à idade, mas sempre se manteve lúcida e recebendo com alegria a todos que a visitavam.
Em 2005 Dona Laura deu uma entrevista ao jornalista Wandecy Medeiros, falando da Menina Francisca. Confira:
Wandecy Medeiros: A senhora conheceu a Menina Francisca?
Laura: Conheci sim. Conheci Domila, que era muito nova e bonita. Conheci Absalão Também. Era um casal jovem é bonito. Domila não tinha filho. Eles moravam parede e meia com Noé Trajano na Rua da Pedra (hoje Rua Galim Assis). Eu morava na Rua Sólon de Lucena, em frente à igreja onde hoje é um hotel. Nasci e me criei ali.
Wandecy: Como era a Menina Francisca?
Laura: Era uma menininha raquítica e franzina. Era da minha idade, mas parecia ser menor. A mulher que a criava dizia que ela era de 1913. Eu também sou de 13. Francisca usava vestidinho de casa, desses xadrezinhos. Era simples, uma criança muito pura. Ela morreu em 23, com nove anos.
Wandecy: Ela se parecia com aquele retrato que temos dela no Parque Religioso Cruz da Menina?
Laura:Não. Eu creio que ela não era mais morena do que eu. Tinha um cabelo bonito, ondulado, de cachos grandes. Ela puxava de uma perna, tinha um dedinho aleijado. Domila dizia que a mulher que criava a menina antes dela dizia que a mãe de Francisca, perto de dar a luz, sofreu uma queda de rede e a menina nasceu deficiente por conta da queda. Ela era uma moreninha. Não era branca, era escura, meio cor de canela. Seu cabelo não era pixaim, se fosse ela seria negra, masaquela imagem da menina branquinha, bem vestida, que nos mostram não tem nada dela. Ela era muito diferente daquela menina. Se você olhar bem vai ver que aquela imagem não é de uma menina, mas sim de uma moça. Eu gostaria de procurar uma menina que parecesse com ela para que a imagem dela fosse pintada com mais fidelidade.
Wandecy: Ela estudava? Frequentava escola?
Laura: Não
Wandecy: A senhora confirma que Absalão e Domilaa agrediam?
Laura: Não, nunca vi. Ser eu for inventar isso eu to mentindo. Domila vivia muito na casa de Noé Trajano. Ela fazia os enxovais das crianças que iam nascer. Ela era alvinha, loura, bonita. Eu a ouvi disse muitas vezes: “Francisca, minha filha, vá lá em casa fazer isso ou aquilo”. Só a chamava de minha filha. Se ela a maltratava, eu nunca vi.
Wandecy: A senhora se lembra do dia que o corpo da menina Francisca foi encontrado e dos comentários surgidos na época?
Laura: Não tô lembrada o mês. Lembro da manhã posterior à noite da morte de Francisca. Domila chegou na casa de Noé Trajano com os olhos vermelhos por que tinha chorado. Ela trazia uma toalhinha no rosto e disse: “Oh, Dona Ernestina (mulher de Noé Trajano) eu tô tão aperreada, mulher; Francisca foi comprar pão e até agora não chegou”. Ernestina a acalmou, dizendo: “Ela deve tá brincando por ai, tenha paciência”. Ernestina estava lavando a casa e a água descendo no meio da rua, eu lembro disso muito bem, apesar de ter só nove anos na época. Quando Absalão chegou (trabalhava na usina eletricidade) disse: “Não, não tem noticia nenhuma”. Daí eles foram para casa chorando e Domila passou o dia todo em prantos. Mas tarde ela chegou aperreada com a historia de que a menina poderia ter caído no rio, que estava cheio. Passou o dia todo nessa ilusão. A menina não aparecia e todo mundo preocupado naquela rua. A coitadinha não saia de casa pra canto nenhum e foi encontrada morta numa manhã chuvosa.
Wandecy: O que a senhora acha que aconteceu naquela noite?
Laura: Toda a noite Absalão ia para a empresa de luz e Domila ia ao cinema. Quando o filme terminava ele vinha deixar a mulher em casa e voltava para a empresa. Quando dava meia noite Absalão desligava a usina de eletricidade e ia para casa. O vizinho que morava em frente à casa do casal, AntonioGirobe, pai de Ridete, disse que nessa noite estava fazendo muito calor e ele abriu a janela de sua casa para arejar. Quando foi mais tarde Domila chegou e chamou por Francisca. Toda noite era assim: Francisca ficava sem dormir e abria a porta. Nessa noite ela chamou várias vezes e nada da menina responder. Ela bateu com tanta força que a menina respondeu. Quando a menina respondeu, ela entrou gritando, brigando com a menina porque ela tinha demorado a abrir a porta. Hoje todos falam que a menina deixou a janela aberta, mas naquela época, ninguém falou em janela aberta não.
Wandecy: Ela entrou gritando e bateu na menina?
Laura: A vizinha disse que ouviu uma pancada e um grito. Ouviu só aquela pancada e aquele grito e depois ouviu quando Domila disse: “Minha filha, fale alguma coisa pelo amor de Deus”. A vizinha pensou em abrir a porta, mas o marido dela não deixou, dizendo: “Não, o marido dela vai chegar. Você não vai ser testemunha de nada”. Domila continuou chorando. Quando deu doze horas Absalão chegou. A vizinha disse que ouviu Domila contando a história e ouviu quando ele gritou: “Ave-maria, não diga uma desgraças dessas não!”. Domila começou a chorar e Absalãomandou ela calar a boca gritando: “Isso não é coisa que se faça, pelo amor de Deus. Ser você contar eu mato você e depois me mato”.
Wandecy: Os vizinhos ouviram tudo isso?
Laura: Os vizinhos ouviram, mas ficaram calados no dia seguinte com essa historia. Depois eles contaram a Noé Trajano. Aí Diá chegou lá em casa e contou à mamãe: “Pelo o que tão dizendo, mataram a menina”. Mãe disse: “Tá doida? Eu não acredito”. Não tinha carro nesse tempo em Patos. Tinha apenas o carro de Nego Hindu (o carro, um caminhão, não era de Nego Hindu, e sim de seu patrão de Gil Vicente) e tava sem luz. Aí disseram que Absalão procurou o Nego Hindu e alugou muito caro o frete. O vizinho, Antônio Girobe, disse que viu quando Absalãocolocou um pacote na mala do carro. O vizinho viu tudo e viu também quando o carro voltou da viagem, já altas horas da noite.
Wandecy: A senhora conheceu Francisca e brincou com ela. Existe um movimento na cidade para se tentar a beatificação dela. Consegue vê-la como santa?
Laura: Acho que ela é santa sim porque era uma criança muito inocente. Nunca vi Francisca fazer nada que desagradasse a alguém. Era uma menina calada, triste, brincava, mas não era sapeca. Usava roupinhas de casa, limpinhas, mas não era bem tratada. Domila fazia muitas roupinhas para ela. Lembro dela sempre usando sapatos e uns vestidinhos xadrez. Quando Francisca morreu Domila disse à minha mãe que tinha guardado as roupinhas dela.
Wandecy: A senhora trata Domila como uma mulher carinhosa para com a menina, e não como a mulher que todos dizem que a maltratava e que foi acusada damorte dela.
Laura: Eu acho que a morte de Francisca foi uma ignorância, uma brutalidade. Domila deve ter jogado alguma coisa nela. Uma vez a menina estava brincando na casa de Noé Trajano e Domila pediu diversas vezes: “Francisca, vá lá em casa”. A menina dizia: “Eu já vou madrinha”. Dizia, mas não ia. Aí Domila tirou um tamanco do pé e rebolou na menina. O tamanco bateu na pequena e ela saiu chorando. Lembro que alguém reclamou com Domila: “Nunca faça isso. Isso não é coisa que se faça não. Se pega no olho dela, tinha cegado”. Eu não vi isso, mas me contaram.
Por Wandecy Medeiros – wandecymedeiros@gmail.com